A História de Ester e Uma Clássica Questão Sociológica

A apresentação da minissérie “A História de Ester” pela rede Record trouxe-me à memória algumas discussões clássicas das ciências sociais, e que, inclusive, foram temas de debates em sala de aula nesta semana no meu curso de graduação. A mais interessante dessas questões discutidas e que eu gostaria de explorar um pouco aqui nesse espaço informal de reflexão, tendo como ilustração a história da rainha judia, é a da relação indivíduo x sociedade.

Segundo o livro de Ester, o rei Assuero, depois de tomar umas e outras durante uma festa que durou 7 dias e, segundo o texto bíblico, já com o coração alegre (...), resolveu chamar e exibir para os seus súditos sua esposa, a rainha Vasti, a qual, de acordo com a Bíblia, era bem bonita. A rainha, porém, recusou-se a ir, desobedecendo deliberadamente à ordem do rei. O rei muito se indignou com aquela afronta e consultou seus conselheiros para saber o que faria diante daquela situação. A orientação dada por eles, nas palavras do príncipe Memucã e narradas no texto bíblico, foi a seguite:

“Então disse Memucã na presença do rei e dos príncipes: Não somente contra o rei pecou a rainha Vasti, porém também contra todos os príncipes, e contra todos os povos que há em todas as províncias do rei Assuero. Porque a notícia do que fez a rainha chegará a todas as mulheres, de modo que aos seus olhos desprezarão a seus maridos quando ouvirem dizer: Mandou o rei Assuero que introduzissem à sua presença a rainha Vasti, porém ela não veio neste mesmo dia as senhoras da Pérsia e da Média ouvindo o que fez a rainha, dirão o mesmo a todos os príncipes do rei; e assim haverá muito desprezo e indignação. Se bem parecer ao rei, saia da sua parte um edito real, e escreva-se nas leis dos persas e dos medos, e não se revogue, a saber: que Vasti não entre mais na presença do rei Assuero, e o rei dê o reino dela a outra que seja melhor do que ela.” (Et 1.16-19)

Essa fala evoca uma noção sociológica fundamental, já explorada por teóricos como Pierrre Bourdieu, Anthony Giddens e muitos outros teóricos: as ações dos indivíduos são, ao mesmo tempo, estruturadas e estruturantes. São estruturadas na medida em que elas não ocorrem no vácuo, não surgem ex-nihilo, mas estão em grande medida condicionadas e limitadas pela realidade social que as precede e na qual estão inseridas. São, porém, estruturantes no sentido de que reproduzem e, portanto, produzem essa mesma realidade. Essa reprodução, porém, não se dá de forma perfeita, devido à singularidade dos atores sociais que as executam e que possuem certa gama de possibilidades e de liberdade de ação, ainda que limitada pelas condições estruturais. E é dentro desse espectro de possibilidades da ação que está a via de escape para a mudança social.

Assim, por um lado, vemos que as instituições sócio-culturais – o império, o casamento e o patriarcado, bem como as relações sociais engendradas sob essas instituições, são as condições estruturais que possibilitaram um acontecimento desse feitio, tal como narrado no capítulo 1 do livro de Ester, inclusive no que se refere aos diálogos ali narrados. Por outro lado, a atitude inesperada da rainha Vasti e a conseqüente possibilidade de reação ou não-reação de Assuero destacam-se naquele momento crítico como portadoras de um alto potencial de influência sobre a manutenção da ordem social e dos poderes estabelecidos. Assim, o conselho dado ao rei tem por objetivo não simplesmente ajudar o rei ou servi-lo, mas, principalmente, o de preservar a ordem social vigente até então. Assim, parece que os conselheiros do rei têm certa consciência de que a ordem social está sujeita a mudanças provocadas por ações individuais, que, em determinadas circunstâncias, podem não apenas reproduzir mas produzir novas nuances na realidade social ao serem coletivizadas, e aí estaria, penso eu, o aspecto estruturante e ao mesmo tempo revolucionário da ação individual e, muito mais ainda, da ação coletiva. Não no sentido de que a mudança social possa ser conduzida por indivíduos agindo individualmente, absolutamente, não é isso que afirmo. Mas sim que a ação individual pode ter repercussões imprevistas ou impremeditadas (emprestando um termo de Giddens), e, pensando também sob uma perspectiva ao mesmo tempo sistêmica e estrutural-funcionalista, eu diria que as ações individuais fornecem novos inputs que poderão repercutir (ou não) na forma de reprodução coletiva da vida social.

Na nossa história bíblica em questão, a forma de tratamento dado a uma determinada ação individual (no caso a recusa da rainha Vasti em se apresentar ao rei) iria sinalizar para a população quais eram os princípios e valores que estavam vigorando naquela sociedade. As consequencias de uma tal sinalização não podem ser calculadas de forma exata, justamente por tratar-se de um objeto das ciências humanas e sociais e não das ciências exatas. Os conselheiros do rei previram que suas esposas e até mesmo todas as mulheres de todas as províncias que ouvissem do fato iriam rebelar-se contra os respectivos maridos. Eles não previram, mas provavelmente, as servas das mulheres ricas e nobres, ao verem suas senhoras buscando a liberdade, buscariam também o mesmo, não somente em relação aos homens, mas também em relação às mulheres senhoras de escravas. É provável também, estamos apenas especulando, é claro, que os súditos, por todo o império, começassem a questionar a servidão imposta pelo imperador sobre seus povos e suas vidas. Daí constatamos que, sob determinadas condições de temperatura e pressão, um império pode cair por causa de uma briga doméstica! É claro que estou exagerando, pois as causas são múltiplas, mas como disse certa vez o Antropólogo Gregory Bateson em "Mind and Nature" "quando a água ferve, nunca se sabe de onde subirá a primeira bolha". Tal é a relação complexa e intrincada entre indivíduo e sociedade.

Não era objetivo dessa breve e informal reflexão entrar na discussão aprofundada acerca da questão do machismo ou feminismo, do imperialismo, das relações internacionais ou mesmo do plano ou da ação de Deus na história. Mas aqueles que quiserem comentar sobre esses e outros aspectos podem acrescentar e contribuir para a expansão desses apontamentos. Só não prometo responder a todos ou entrar em debates, pois meu tempo é bem escasso, mas com certeza irei ler todos os comentários.

Comentários

  1. Marcão seu trabalho está otimo. Tudo muito bem escrito. Está de parabens! Sucesso na empreitada! Abraços

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  2. Ótimo comentário, ressaltando o quão importante é a ação individual, também,reforçando que somos responsáveis por nossos atos e influenciam aos demais.

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